XI
Quando se escreve sobre a
injustiça do mundo e posteriormente se publica, dois caminhos são convenientes
para trilhar: continuar escrevendo e cumprir o dever de quem tem ao seu favor a
palavra, resultante do compromisso próprio com a permanente missão intelectual
ou transformar-se em um covarde, confirmando tua posição como característica
própria, por achar que não se pode dar jeito no mundo ou uma coisa qualquer
desse tipo.
Em
um tempo não muito remoto aos dias de hoje, travei muitas discussões com meu
professor de filosofia sobre o ato de fazer algo pela humanidade e ao mesmo
tempo, sobre o silêncio e a omissão dos que sempre estão a espera de algum osso
para roer, feito os cachorros esfomeados ou migalhas das mesas fartas dos que
representam o poder nas suas mais variadas esferas sociais.
Muitas
foram as discussões com direito a réplica e tréplica, mas sempre sob um nível
de respeito, equilíbrio e discernimento suficientemente coerente para nossas
conversas durarem horas, tanto de corpo presente quando pelo telefone, que por
sinal, era menos frequente.
Certo
dia, marcamos para nos encontrarmos em um café na praça de alimentação da
faculdade e prometemos não conversar sobre as causas das dores do mundo,
primeiro, como se fossemos conseguir não falar, segundo, como se quando
falássemos sobre as dores do mundo, não estivéssemos nos referindo às dores das
pessoas. É por isso que tínhamos uma opinião incomum sobre consertar o mundo,
pois sempre nos referíamos a mudança das pessoas. Lembro-me que quando o
professor Dr. Zuan Açoeiro se aproximou de mim usando seu casaco de couro
preto, seu chapéu stetson adquirido em um
sorteio realizado numa vaquejada em Bezerros-PE, sua bolsa de alça envolta do
ombro esquerdo e apoiada no seu lado direito e na mão esquerda segurava um Neruda, cujo título não me recordo no
momento, me olhou com aquele olhar de quem estava apreensivo e ao mesmo tempo
ansioso, estendeu a mão direita emendando com a velha cordialidade:
___
Como vai o amigo que eu gostaria de ser se eu não fosse eu?
Eu,
como sempre, sorri e travei-lhe um aperto de mão que quase quebro um dos seus
dedos, pois entre um movimento e outro, ele se deslocou e quase não suportou a
pressão. Mas como a recepção foi muito calorosa naquela noite, nem o professor
nem eu percebemos a quase quebradura resultante da euforia inicial.
___
O que temos para hoje, professor?
___
Temos tudo e nada.
___
Como sempre, não é?
___
Para quem quer aproveitar o tempo sobre alicerces profundos, estão aí,para
todos, os ensaios, as literaturas, as obras de artes, a boa música, o teatro e
a música erudita, a música popular...
___
Muita gente anda dormindo muito, não é professor?
___
Certamente! É preciso conhecer os livros, para saber como são as coisas, o
porquê de outras, entender as relações sociais, o funcionamento das
instituições, a mente humana, o dogmatismo religiosos, os adestramentos da
mídia fascista e de partidos golpistas.
___
Compreendo bem o que o amigo estar me falando.
___
Imaginemos uma literatura bem escrita, um romance, onde é possível perceber,
sob uma análise psicológica e do discurso do autor, como disse Nelson Rodrigues, "a vida como
ela é".
___
Quando li toda obra de Machado de Assis na primeira
década do século XX, percebi a preocupação desse carioca e denunciar questões
que implicavam a sociedade brasileira tanto no período Monárquico como no
Republicano. Esse grande mestre da literatura brasileira teve o privilégio de
analisar a transição desses dois sistemas políticos, mesmo tendo o segundo,
dado continuidade a muitas sob aspectos políticos e econômicos do anterior.
Machado de fato, soube cumprir com a causa maior que cabe a um escritor:
denunciar de maneira inteligente as injustiças sociais, chamar atenção da
sociedade através de narrativas cobertas de ironias acerca da ética politica,
do espírito oportunista de muitas doutrinas religiosas, dos comportamentos
dissimulados da humanidade, cujos mesmos foram analisados através da criação de
personagens dispostos nos seus contos, crônicas, romances...
___
Vejo que o amigo estar inspirado e que realmente leu Machado de Assis. Temo
constatar em professores, que também possuem o compromisso social que
carregam os escritores e poetas, a ausência da leitura, e antes dela, a paixão
pela mesma bem como a consciência da sua missão. Quando lemos Drummond, nas entrelinhas de muitos dos seus versos,
é possível constatar seu compromisso com a poesia, compromisso este que
configura seu compromisso como autor que também possui compromisso
social, com a vida, com o amor pela vida, com a renovação da vida...
Eu
vi os olhos do professor Dr. Zuan, um brilho que gerou no seu olhar, uma
expressão diferente. O café sobre a mesa, não lhe chamava atenção. Em súbito
momento, tomado de uma inspiração Nietzscheana, o professor,
ao observar a chegada de muitos alunos, paralisou o olhar sobre universitários
dos mais variados cursos, mas em especial, direcionava seu discurso para os que
tinham a missão acadêmica. Sem pestanejar, meu professor de filosofia subiu na
cadeira da direita, que o esperava juntamente comigo para o café filosófico, e
proferiu palavras da sua alma:
___"Escutais minha gente!
Mas se não abri-vos o coração
seus ouvidos se fecharão para a mensagem que voz trago.
Para ouvir o que vos tenho a dizer,
é preciso estar atento,
disposto,
destinado a não apenas escutar o que
as palavras traduzem,
mas o que elas podem fazer com suas
almas, mentes e corações.
O que é uma missão e o que cada missão
trazida por cada um de vocês representa para si e para a humanidade?
Quando esta missão fará a diferença,
mesmo que o tempo pareça emperrado e as luzes do céu parecerem se apagarem?
O que se pode fazer com aquilo que se
tem em termos de conhecimento,
que venha fazer a diferença para os
que não tiveram a mesma oportunidade que os que me escutam?
Por que esperar o dia de amanhã para
dizer: "Vou fazer",
se hoje mesmo cada um poderá iniciar
seu projeto de mudança própria,
mudança esta que poderá refletir na
mudança alheia?
Não se pode ler e não buscar na
leitura, um projeto de emancipação.
São tantos os que me leem e me escutam
que apenas olham para o tempo,
como se ele fosse esperar o momento de
cada um para prosseguir ponteiro a fora, calendário a dentro...
Muitos dos que esperam são vencidos
pela marcha deficiente da mente ilusória,
incapaz de dar o primeiro passo,
em busca da coragem que deve reger o
cumprimento da missão ao qual todos estão encarregados de exercer.
Não estou aqui para dizer o que cada
um deve fazer,
mas preciso lembrar que cada um
precisa pensar sobre o que tem como missão,
e que toda missão não é só a trilha do
seu mentor,
mas também o antídoto de muitos
enfermos do intelecto,
dos doentes da falta de oportunidades,
dos reféns do desigual e desonesto
panorama socioeconômico.
Não deixem que o tempo consuma suas
missões,
seus propósitos, seus destinos.
Muitos destinos dispersos por aí,
dependem da missão de todos vocês,
especialmente porque abraçaram-na como
missão.
Um café para todos por minha conta!!!"
O
professor me comoveu tanto com seu discurso que acabei tomando seu café frio,
enquanto ele, ao descer da cadeira, com o semblante emocionado, segurou minha
mão, com um aperto caloroso, na outra mão o café quente que eu havia pedido, me
dizendo:
___
Se essa gente toda aceitar o café que ofereci no final das minhas palavras,
algo vai dar errado.
___
Calma professor! Vou pedir outro café para a gente continuar nossa conversa.
___
Vamos de quê agora?
___
Vamos com calma. Tenho um livro meu aqui para lhe mostrar. Acabei de revisar
para a publicação.
___
Pois bem. Vamos vê-lo sim!
___
Como o senhor gosta de prosa, pensando esses dias no meu escritório de
trabalho...
Fábio
de Carvalho [Maranhão]
12/03/2017,
16h - 17h31min- Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca
Particular].
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