VIII
Eu nunca quis compor samba em homenagem a
malandro nem pra gente metida
a socialight. É que
gente com característica de ser o que não é estar cheio por aí. É comum a
gente encontrar, por exemplo, aqueles e aquelas que não querem se misturar com
a "gentalha", pois para eles, quem tem sangue nobre deve preservar a
linhagem, até quando se trata de uma festa carnavalesca estilo baile municipal.
Geralmente, essa gente metida a besta, procura não perder um evento como
este por nada, pois deixar passar uma oportunidade como esta é o
mesmo que atirar no próprio pé e assinar declaração de membro da classe C,
D e E. Eu dou rizada quando vejo essas pessoas achando que tem sangue azul
e quase flutuam quando caminham, pois quase não pisam no chão. Ainda
arrisco dizer que, boa parte dessa corja "ricaça sem ser" são
míopes e tem problema de torcicolo permanente, pois não olham do lado
quando passam pela gentalha nas ruas. Essas pessoas juram, sempre, que além de
pertencer a dita "sociedade" do ponto de vista do capital e da
educação burguesa, são inteligentes e bem articulados. Claro que cada palavra
dessa cabe como adjetivo para toda pessoa sem exclusão, mas o sentido aqui é
outro, e já estar claro como a roupa de uma madame que me inspirou essa crônica
no último baile municipal realizado em Cortês. A fantasia, afirmo, tratou-se,
na ocasião, de um uniforme branco. Não denunciarei para não desvendar
nem atropelar algum pormenor que mereça a interpretação única de cada
leitor e leitora.
Na última noite de sexta-feira (17), eu
vibrei quando vi aquela senhora de meia idade, de natureza humilde, indo se
misturar com o pessoal do baile. Antes disso, presenciei a soberba de um grupo
fantasiado, achando que iriam para a posse de Donald Trump, sem
perceber que seriam hostilizados por serem latinos. Mas o mais chocante, foi
ter passado por dois conhecidos, que juravam ser em pessoa, Adão e Eva indo
para o paraíso sem precisar pagar o dízimo e ofertas através de depósitos bancários.
Não me cumprimentaram mesmo eu tendo quase quebrado o pescoço ao olhar para
eles para não ser indelicado. Caminhavam como se fossem eles, o casal mais
esperado do baile, e por consequência, os mais odiados, pois como sempre
falo, onde há sucesso lá estar a inveja. Mas o sucesso deles e de tantos
outros são regados a enormes doses de ilusão misturada com sonho, e isto só
reforça a teoria do pertencimento a sociedade, que muitos não abrem mão de
pertencer, mesmo sem ter seu deus em abundância: o dinheiro, nem o
conhecimento que emancipa.
Caminhei para casa e liguei para um amigo,
que por sinal, estava pronto para ir ao baile, e que na hora da minha ligação,
já declarou de pronto que estava ansioso para vê toda aquela mistura de ébrios, gente humilde, classe
"A" e tudo o que mais era de imprevisível.
___ Quais as tuas expectativas, Martins?
___ Todas, meu bom amigo!
___ Tem alguma específica?
___ Sim! A baba já estar até caindo.
___ Qual é?
___ Vê a cara daquelas senhoras
"ricas" no nosso meio. Imagina só: a cara da riqueza com a cara da
gentalha numa festa só.
___ Para quem pensa que dinheiro é tudo,
será o fim da picada.
___ Lembrei-me daquela madame, quando uma
vez, deu um discurso odioso e cheio de preconceito. Falou na cara da minha irmã
que a confraternização da empresa seria dividida em duas.
___ E aconteceu?
___ Sim. Um dia foi da turma do serviço
pesado, no outro, do pessoal da linha de frente. Acredita que ela teve a
ousadia de dizer na maior cara de pau que festa do segundo escalão tem que ser
entre eles, e desejou em si própria uma dor de barriga para ter a desculpa de
não comparecer. Ela sendo gerente, não poderia faltar. Já pensasse?!
___ E no baile de hoje, essa madame,
certamente irá, não é?
___ Já estar lá, meu amigo. E eu vou fazer
questão de cumprimenta-la com a mão direita, molhada de wisk. Andes de
oferecer-lhe minha garra direita, vou tossir umas dez vezes na mão na sua
frente, e esperar sua reação.
___ Vejo que o amigo estar disposto
a tirar o atraso.
___ Não é bem isso. O fato é que se ela
tem raiva de pobre, e não aguentar minha inconveniência regada a vírus de tosse, que vá curtir outro baile
com a socialight.
___ Você me faz rir e chorar de tanto rir
Martins.
___ Mas é fato o que declaro ao amigo. Eu
jamais me imaginaria nesse baile municipal de carnaval sem oferecer uma mão
para quem anda com álcool gel na bolsa para desinfetar as mãos após
cumprimentar gente pobre feito nós. Sabe o Tobias, aquele meu vizinho?
___ Sei.
___ Acabei de pagá-lo adiantado para ele
realizar um serviço interessante. Ele vai filmar esse movimento todo, até o
momento em que ela sacar da sua bolsa de 18 reais comprada na 25
de março e tirar o álcool
gel para limpar as mãos. Solicitei no mínimo três flagrantes.
___ Esquece essa ideia, Martins.
___ Esquecer? Jamé!!!
___ Mata-me de rir! Mas
me fala uma coisa: Você vai de cara limpa? E se a megera te conhecer e
depois querer planejar vingança?
___ Ela não vai me conhecer,
Nascimento!
___ Não?
___ Não, pois vou fazer jus à Noite dos Mascarados.
___ Ideia boa. Mas toma cuidado pra não se
apaixonar viu!
___ Que ideia!
___ Vai que a ilusão da música de Francisco te pega e
você muda de ideia, e ao invés de golpeá-la, você leve uma rasteira das
próprias pernas.
___ Melhor esquecer isso e ficar na
torcida, Nascimento.
___ E esse vídeo, o que vai fazer
com ele?
___ Sei lá. Por hora vou colocar no meu
arquivo. Depois penso melhor.
___ Então boa sorte. E cuida pra não
beber demais.
___ Deixa comigo.
___ Boa noite, Martins!
___ Boa, Nascimento.
Quando desliguei o telefone, me veio de
súbito uma vontade de ir àquele baile só pra vê a cara da riqueza misturada com
meus parceiros e minhas parceiras. Uma máscara resolveria meu problema. Se bem
que para muita gente, a máscara já vem de fábrica, e sem censura, se enquadra
com o perfil da megera, que em nome do
sangue da nobreza, humilha e descrimina os pobres pela condição social.
Bendito carnaval, que coloca todo mundo em
um balaio só, e desfigura ao menos momentaneamente, a hipocrisia do apartheid social, que a maioria do povo nega
existir.
Quatro horas da manhã, no auge do sono
profundo, o telefone vibra emitindo alerta de chamada. Era Martins, bêbado e
feliz.
___ Fala seu vigarista! Isso são horas de
ligar para um pai de família morto de sono?
___ Nascimento, me deixa falar... Você não
imagina!
___ Eu? Imagino sim. Você nem imagina como
eu imagino.
___ Olha, tenho novidades viu.
___ E o plano deu certo?
___ Qual plano?
___ A vingança contra a megera.
___ Sim. Só liguei pra te dizer que quando
passar minha ressaca eu te conto tudo.
___ Vai dormir, Martins.
___ Já estou deitado.
___ Olha, ao menos me fala uma coisa: com
quantos foliões se faz um baile carnavalesco?
___ Com quantos eu não sei, mas graças a
Deus que não fizeram camarote. (ou fizeram?)
___ Fizeram ou não?
___ Sabe que agora fiquei na dúvida? É que
eu estou muito bêbado.
___ Vai dormir, Martins. Quando acordar me
telefona.
___ Melhor. Se eu esquecer você liga.
Tenho novidades...
Fábio de Carvalho [Maranhão]
19/02/2017, 19h30min - 20h26min-
Domingo, Cortês-PE. Escritório de Trabalho [Biblioteca
Particular].
Foto: Fábio de Carvalho - Acervo Pessoal / 02/2013 |
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