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domingo, 2 de abril de 2017

Desculpa Arranjada: uma crônica meio conto. / Fábio de Carvalho [Maranhão)

XIV

Eu já vi todo tipo de gente e concluí que há gente para tudo, mas que certos detalhes são carregados de uma singularidade tão pertinente que não há como a gente esquecê-los. Além do mais, quando penso que já havia visto de tudo e mais um pouco, me aparece cada figura, que cá para nós, me faz dar boas risadas de uma hora para a outra sem que, até eu mesmo, espere por isso. 

Higino Fonseca de Menezes, um economista aposentado, filho de imigrantes Italianos da primeira safra da Velha República, foi um sujeito que conheci apenas por uma história contada pelo Avô do meu Pai, mas que para chegar aos meus ouvidos, tive papai como narrador nato, onde as alegorias presentes no sotaque interiorano da Paraíba, me fizeram imaginar a história desse sujeito como se eu mesmo houvesse convivido com o tal. Papai nunca contava uma história numa tacada só. Fazia "arrodeios" para chegar ao assunto principal. Lembrava-me um fato aqui, citava outro ali e a história ia se desenhando como um esboço de ficção literária, que por sinal, tenho praticado e aprendido aos poucos a fazer de uns três anos para cá. Ficção não é meu forte, embora eu seja fascinado por literatura dessa linha. Machado de Assis me ensinou muito, mas não posso deixar de citar Victor HugoFlaubertGracilianoGuimarãesClarice LispéctorF. Scott FitzgeralNelson Rodrigues e tantos outros que se eu for citar, passaria o resto da noite apenas fazendo referências. Mas retomando ao assunto, Higino sempre foi bom sujeito. Ao menos foi a conclusão que tirei após ouvir algumas histórias sobre a sua pessoa. Mas o que mais me chamou atenção, foi o fato de que ele, para tudo, arranjava uma desculpa, além, é claro, de sempre se encontrar só, usando sobretudo de cores marrom, cinza, azul jeans ou preto. Gostava de usar chapéu Cury preto ou marrom. Baforava um charuto se vez em quando e era viciado em Henry Miller, mas essa informação eu só obtive com minha tia, irmã de papai, que é especialista em linguística e mestre em Literatura. Esse fato me fez não apenas ler, mas consumir e devorar a obra dessenorte-americano, que por sinal, tem como característica literária, uma mistura de ficção e autobiografia. O Menezes, como papai se referia ao Higino, gostava da boemia. Tragava sempre um Chivas. Era fã dos destilados da Escócia. Certa vez, bêbado, perto dos seus 60 anos de idade, gritou no Centro Histórico de João Pessoa

___"O meu sonho é morrer bêbado em uma fábrica de Chivas!!! Bendito seja o inventor desse néctar!!! Salve o Robert! Robert não! Santo Robert! Vou acender umas velas para ele hoje de frente para uma garrafa como monumento Sagrado!!!"

Lembro que, quando papai me narrou esse fato, sorrimos tanto que até um copo da cerveja deitou sobre a mesa por causa da euforia do momento. Papai emendou com um detalhe curioso sobre essa figura:

___ Menezes era um solitário.
___ Solitário, papai?
___ Sim. Sempre estava só.
___ Ele não tinha amigos?
___ Se tinha eu não sei. Era pouco comunicativo. Bebia só. Fumava só. Dizem até que conversava sozinho. Mas isso é outra coisa. (risos)
___ Imagino o que se passava na cabeça desse sujeito...
___ Ele não tinha família?
___ Até que tinha. Mas...
___ E moravam em João Pessoa?
___ Dizem que não. A conversa que ouvi é que eles residiam em Recife e que também tomavam Wisk adoidados.

Enquanto papai me contava os detalhes sobre Higino, guardei na memória seu perfil de homem solitário e recatado através sua fala "Sempre estava só...". Imaginei: 

"Deve ser por isso que, segundo minha tia, ele sempre evitava as pessoas, recusava convites ou dizia que compareceria aos lugares e nem sinal dele depois. Se fosse hoje, creio que até o telefone ele desligaria. Facebook e Whatsapp nem em sonho. Talvez ele fosse um desiludido ou um extremista revoltado... "

Depois de quase meia hora de conversa, papai me narrou uma prosa que Higino teve com uma senhora de meia idade, chamada Augusta Duarte, viúva há exatos vinte anos e mãe de uma filha, Isabel Duarte de mesma idade da sua viuvez. Dona Augusta era um rabo de saia pretendida a se casar com ele, mas que depois dessa conversa, o apelido de "desculpa arranjada" lhe rendeu até o fim da sua vida, aos longos 85 anos, seis meses e sete dias de idade. Faleceu em um dia 13 não sei de qual mês, mas o dia da semana foi em dia de sábado, exatamente às 13h13min após ter tomado 13 doses de Chivas e ter gritado bem auto o nome de 13 obras preferidas de Henry Miller, acentuando desesperadamente aquela que o consagrou: Trópico de Câncer. Repetiu quase cem vezes o nome desse monumento literário antes de dar o último suspiro. Umas duas ou três vezes dona Augusta soltou que ele tinha perfil avarento, e que talvez, carregasse algum trauma que o fazia ser, segundo suas palavras, como era: "Um estranho".

Em um dos Cafés de João Pessoa, escutaram a narrativa da conversa pela própria dona Augusta proferida para uma tia sua, que já beirava os noventa e cinco anos de idade. Esse acontecimento explica o porquê de o senhor Higino ter levado à eterna alcova, a má fama de "desculpa arranjada". Não sabia ela, que perto da sua mesa, havia uma vizinha sua, de nome não revelado pelo garçom que também não deve aparecer nesta história de forma direta. Logo, a rua estaria cheia da mesma narrativa, impressa e reproduzida em um folheto, com o título da alcunha que sacudiu a cidade em um reboliço só:

___ Tia Zanete, aquele sujeito não tem jeito. Tudo que eu falava ele rebatia. Aja desculpas para uma pessoa só.
___ Como era o nome dele mesmo?
___ Higino. 
___ Pelo nome era feio.
___ Talvez. Mas deixe-me dizer um pedaço da nossa prosa. Vá imaginando.

Passado quase um minuto, dona Augusta Duarte detalhou o desastre do acontecimento 27 anos antes daquela data. 

 ...

___ Bom dia, seu Higino! Que honra lhe encontrar!
___ Honra? E quem é que mais tem honra hoje em dia dona Augusta? Com exceção de algumas senhoras religiosas e outras que perderam a memória, quase todo o resto não tem nem vergonha quanto mais honra!
___ Ao menos me deseje um bom dia. Devolva a gentileza, homem!
___ Devolver? E eu lhe tomei alguma coisa emprestada para lhe devolver dona Augusta!?
___ Nossa! Já vi que o senhor estar armado hoje. O que o senhor tem? Estar de mal com a vida ou o quê?
___ Quer que eu comece pelo começo ou pelo fim?
___ Tanto faz.
___ Primeiro tanto faz não é resposta. Depois não posso estar de mal com a vida, pois vida não é gente. E sobre o que eu tenho, para que a senhora quer saber? Vai mandar assaltantes lá em casa para me roubar, matar ou sequestrar? Armado eu nunca andei. A não ser que esse "armado" que a senhora proferiu queira dizer outra coisa. Se for o que estou pensando, pode tirar o cavalo da chuva, pois acho muito feio mulher oferecida. E qual o motivo de a senhora expressar esse "Nossa!" exclamativo? Que eu saiba, Nossa Senhora estar no céu, se é que há céu. Eu já vi tanta gente morrer e os outros dizerem que foram para o céu, que, sinceramente, aja gente em um lugar só. Será que cabe essa gente toda lá, dona Augusta?
___ O senhor deve estar variando.
___ Agora deu pra me chamar de louco?
___ Não foi isso que eu quis dizer, homem!
___ Homem? Meu nome é Higino Fonseca de Menezes. Pode se dirigir a mim chamando-me por um dos três. Homem é gênero e não nome próprio. Além do mais, prefiro que me chame pelo nome do que pelos sobrenomes.
___ Não acha que estar exagerando, senhor Higino?
___ Estar me chamando de velho? 
___ Não!
___ Então não me chame de senhor, SENHORA!
___ Por Deus, Higino. Pare com tantas ofensas. O que eu quis desde o começo foi lhe tratar bem sendo gentil.
___ A senhora é Cristã?
___ Sou.
___ Então leu a Bíblia?
___ Não completa. O que conheço é o que assisto nas missas, durante as homilias dos padres.
___ Diga-me uma coisa: a senhora sabe que chamar os outros de louco é pecado? Mateus 5,22 foi bem claro.
___ Já lhe disse que minha intenção não foi essa. Quando eu perguntei se o senhor estava variando, foi para chamar sua atenção...
___ Pois bem, escolha melhor as palavras, e da próxima vez, poderemos ter uma conversa mais agradável.
___ Estar bem HIGINO, FONSECA, MENEZES...

...

A narrativa foi se estendendo, enquanto a vizinha de dona Augusta tomava nota de tudo. Pelo perfil descrito pelo garçom, tratava-se de uma jornalista, que por sinal, frequentava diariamente o Café xxxx... A conversa prosseguia enquanto sua tia, já quase transformada em uma garrafa de café, pois já havia tomado quatro xícaras, prestava atenção como ninguém na narrativa da sobrinha...

...


___ ...mas, posso lhe fazer um convite, Higino?
___ Se for decente!
___ Estar insinuando que sou indecente?
___ De modo algum. Foi forma de falar.
___ Venha cá. Sente-se aqui...

Surgiram as desculpas, que de cara, expressava talvez, um receio, um trauma ou até uma aversão a figura feminina da parte do senhor Higino.

___ Não posso!
___ O que há?
___ Estou com problema de coluna. Ainda por cima, estiou com uma violenta crise hoje.
___ Tome um pouco de água. O dia estar muito quente hoje.
___ Estou com infecção urinária. Tenho medo de não conseguir urinar.
___ Então aceite um docinho desses que trago aqui na bolsa. Eu mesma foi quem os fiz.
___ Sou diabético. Só se for para eu morrer mais depressa. Quer me matar?
___ Claro que não, Higino!
___ Então guarde esses doces, dona Augusta!
___ Prove um salgado! Veja-os. Eu também os fiz hoje.
___ Como? Para dar sede? Não vou poder tomar água depois. É melhor deixar como estar. E, além disso, eu sofro de pressão.
___ Sabe o que lhe falta Higino?
___ Depende do ponto de vista!
___ Uma mulher! Case-se! 
___ A senhora acha mesmo?
___ Apaixone-se! Vai lhe fazer bem...
___ Não posso! Sou cardíaco...

(...)

...


Como era esperado, para tudo o sujeito arranjava uma desculpa, e além do mais, era um pessimista de carteirinha.

...

___ Deus lhe proteja, Higino!
___ Há essas horas? E Deus anda com tempo dona Augusta? Ligue agora mesmo no Jornal e assista sobre as mais de 250 mortes, mais de 400 feridas e feridos e ainda mais de 200 desaparecidas e desaparecidos por deslizamento de terra na Colômbia. Será que ele vai preferir me proteger, me acudir ou aquela gente toda que sofre e chora a morte dos seus entes por causa dos tais deslizamentos? Poupe-me dona Augusta. Eu vou é tomar meu Wisk agora. De todo jeito um dia eu vou morrer mesmo...

...

Certo dia surge um folheto na rua. Jogaram em todos os bairros de João Pessoa, cujo título remetia ao solitário e estranho Higino Fonseca de Menezes: "Desculpa Arranjada". A narrativa da conversa fora descrita de forma  original. Até parecia que os suspiros de dona Augusta iriam sair pelas letras impressas pela máquina datilográfica em papel jornal de quinta. Quando Higino soube da notícia pelo carteiro que sempre passava pela sua residência, solicitou-lhe uma cópia. O carteiro de pronto, enfiando a mão dentro da bolsa das correspondências, retirou um maço de folhetos que contavam uma média de trezentas cópias. Ele, sínico e anarquista, enfiou uma interrogativa:

___ "Quer quantos?"

Higino, instantaneamente, perdeu a paciência e dando um bote, conseguiu lhe arrancar umas trinta e uma unidades, e além disso, não perdeu a oportunidade de alarmar a vizinhança:

___ Homem, deixe de ser nojento! Homem não! Cabra safado!
___ Mas o que eu fiz seu Higino?
___ Ainda me pergunta o que fez seu cara de dissimulado e cínico até dizer basta! Suma daqui desgraçado! Suma antes que eu jogue uma chaleira de água quente na sua cara de diabo idiota!...

Dali para frente, seu Higino leu o folheto mais de vinte vezes, e lembrando-me diálogo travado com dona Augusta, disposto de maneira precisa no folheto, imaginou como seria se tivesse deixado levar por aquele rabo de saia, que por sinal contando 44 anos de idade, enquanto ele, aos 58, ainda dava um bom molho. Ficou com aquilo na cabeça. O desgosto de ter lido aquela narrativa não foi maior do que o arrependimento de não ter cedido às cantadas daquela senhora, gentil e apaixonada. Agora era tarde. Contando oitenta e cinco anos de idade, enquanto ela, setenta e um, Higino se deu conta de que a vida  passou, e a única oportunidade que lhe surgira após ter ficado também viúvo na flor da idade, deixou voar, feito andorinha quando quer fugir da chuva. Havia quase seis anos que Higino não tocava em uma gota de Wisk. Resolveu abrir um Chivas 25 anos para quebrar o jejum. O desgosto lhe tomou, e aquele foi o último dia da sua vida em corpo...

"Faleceu às 13h13min após ter tomado 13 doses de Chivas e ter gritado bem auto o nome de 13 obras de destaque de Henry Miller, destacando falas e frases das suas literaturas prediletas e repetindo Trópico de Câncer até dar seu último suspiro...".

No bolso falso esquerdo do seu sobretudo preto, havia um cartão com a sua frase favorita, mas que não era de Henry Miller. A vez foi de Vinícius de Moraes. Solicitava em observação: "Escrevam isso na minha lápide. Este é o meu último pedido".


Fábio de Carvalho [Maranhão] 
02/04/2017, 20h31min - 21h21min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]

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